Vale lembrar que um dos registros considerados mais antigos sobre o autismo faz parte da mitologia.
"Há uma lenda oriunda da região setentrional da Europa, uma vasta região da Escócia à Irlanda, e da Normandia à Suécia, sobre os chamados changelings, ou crianças trocadas. O changeling é normalmente, nas várias versões da história, a progênie de uma fada, de um troll, de um elfo, ou de outra criatura lendária, que é deixada secretamente no lugar de uma criança humana.
Em tudo se lhe assemelha, exceto em temperamento. Os pais, vendo alteração física nenhuma, não percebem de imediato a troca. Os seres lendários que perpetram esse ato estão motivados, quer pelo desejo de ter um servo humano, ou o amor de uma criança humana (já que sua própria progenie não tem capacidade de amar como um ser humano), ou mesmo por pura malícia.
(...)
Esse mito já foi usado muitas vezes com referência a crianças deficientes, incluindo autistas. Mas o propósito de tomá-lo aqui é desconstruí-lo, de modo que ele evoque uma resposta mais positiva do que a resposta medieval à criança “changeling”, porque faz todo o sentido do mundo que este mito seja não mais que a busca coletiva de sentido a respeito da dura realidade da quebra de expectativas, quando se recebe uma criança deficiente em geral, e em particular, de maneira até mais radicalmente dolorosa, quando se recebe uma criança com autismo."
Como a maior parte das figuras mitológicas das Idades Antiga e Média, hoje eles servem de inspiração para jogos de RPG. A figura acima é de um RPG chamado Changeling.
Apesar das lendas modernas não serem semelhantes às antigas, elas mantém entre si uma origem em comum: são fruto do desconhecimento. Resolvi então, baseando-me em minha experiência pessoal, no artigo acima e em outros que li escrever sobre mitos, falácias e imprecisões da sabedoria popular (ou seria melhor dizer, ignorância popular?) a qual nós aspies temos que conviver.
- Somos doentes
Segundo Christopher Gillberg o autismo não é uma doença, é um distúrbio do desenvolvimento. Em leigas palavras, isso significa que em algum momento de nosso desenvolvimento aconteceu (ou não aconteceu) alguma coisa que geralmente não acontece ou acontece de outra forma na maioria das pessoas. Se esta alteração é boa ou ruim deixo ao juízo particular de cada um avaliar.
Não se sabe exatamente que alterações são estas, e isto nos leva ao segundo mito:
- Somos vítimas de (algum agente externo aqui)
Deste tipo de mito, o mais famoso atualmente é em relação com as vacinas. Um estudo publicado na Inglaterra em 1998 relacionava o autismo com a vacina tríplice viral. Atualmente a maior parte dos cientistas que participaram deste estudo reconhecem que não há uma relação entre autismo e vacinas, porém a imprensa deste país fez um alarde tão grande sobre este assunto que muitos pais estão deixando de vacinar seus filhos naquele país, além do mito ter se espalhado rapidamente pelo mundo.
Não há qualquer consenso no meio científico sobre as causas da Síndrome de Asperger, há muitas teorias feitas por pessoas com espírito científico e um grande desejo de encontrar esta resposta, e todas estão em processo de comprovação.
Pessoas que pregam que o autismo (em todas as suas variedades) tem inquestionavelmente uma determinada causa costumam estar apenas extasiadas com alguma reportagem recente que saiu no jornal ou na televisão a respeito de alguma destas teorias, a qual ela interpretou de forma precipitada ou o próprio editor da matéria não tinha conhecimento suficiente sobre o assunto (ou ambos).
Outro tipo de pessoa que gosta de alardear que somos doentes são aquelas que precisam que as outras acreditem nisso para comprarem as suas curas milagrosas, e então chegamos ao terceiro item:
- Podemos ser curados por (tratamento sem comprovação científica aqui).
- pais que, entendendo que seus filhos são "doentes", acreditam que ele só ficará "bem" (para cada um este "bem" pode ter um significado diferente) se alcançarem algum tipo de "cura".
- pessoas revestidas de uma certa aparência científica que observam no desejo destes pais uma boa oportunidade de ganhar dinheiro ou reconhecimento pessoal.
Estas pessoal mal intencionadas passam a divulgar tratamentos milagrosos para nós, e alguns pais desanimados com seus filhos passam a alimentar o mito como uma esperança de vê-lo "curado" e "bem".
- Queremos a cura
Os aspies costumam ter algumas dificuldades comportamentais relacionadas com a Síndrome, mas que não são ela em si, e quanto a isso muitos podem se sentir incomodados e buscar, com ou sem a ajuda de profissionais, adaptar o seu comportamento de uma forma que permita realizar algumas coisas que sejam do seu interesse mais facilmente e tenha uma vida mais agradável.
Geralmente estas questões são relacionadas a sua vida social. Deve ser dito que nos relacionamentos sociais é muitas vezes preciso abrir mão de algumas atitudes que gostaríamos de tomar para manter a aceitação social, são dois valores que se confrontam, e dada a subjetividade destes valores, é importantíssimo que cada aspie tenha a liberdade de pesar individualmente estes valores e decidir se este preço vale a pena ser pago ou não.
Isto não deve ser visto como a busca da cura de uma doença, mas como uma auto-reavaliação, uma atitude saudável e que muitas pessoas, aspies ou não, praticam.
- Precisamos de compaixão/pena/piedade.
A pena carrega em si uma idéia de que o outro está em uma condição inferior. As pessoas que riem e caçoam de nós e as que se mostram demasiadamente "compreensivas" no fundo partem do mesmo princípio, o de que não somos pessoas e serem levadas tão a sério quanto as outras.
Somos pessoas sujeitas a cometer erros, e mesmo de não perceber que estes erros são de fato erros, assim como as outras pessoas. A diferença verdadeira é que o tipo de erro a que estamos mais sujeitos é diferente dos da maioria das pessoas.
Temos dificuldade com coisas que para a maioria das pessoas parecem estupidamente fáceis, no sentido oposto, muitos aspies tem uma extrema habilidade com coisas que para a maioria das pessoas parece difícil. Como em outras circunstâncias em que há um choque de diferenças, este é um cenário propício para o desenvolvimento da discriminação preconceituosa.
- Somos muito burros e/ou idiotas! Nossas realizações serão muito inferiores as das outras pessoas.
O QI das pessoas do espectro do autismo pode variar entre níveis muito altos e muitos baixos, no caso específico de nós aspies, segundo o DSM IV temos níveis de QI geralmente normais ou superiores.
O aspie pode ter um pensamento original e desapegado de alguns valores que as outras pessoas carregam e pode usar esta sua forma de ver o mundo para criar muitas coisas, desde que ele queira isso e tenha acesso aos meios necessários.
No entanto muitos aspies possuem uma grande quantidade de conhecimento em uma área que as pessoas não entendem ou não consideram útil/necessária, ou então possuem um pensamento extremamente original, que para as outras pessoas compreenderem precisariam se desapegar de uma grande quantidade de conceitos empíricos que carregam, e por isso acabam sendo alvo da incompreensão.
- Somos muito inteligentes! Seremos todos gênios notáveis e destacados atuando em áreas de interesse específicas.
Este é um caminho difícil mesmo para quem reúne estas qualidades, pois grandes feitos geralmente envolvem um grau enorme de esforço individual, e para manter o foco nesta busca é preciso gostar muito do assunto e desejar muito alcançar o seu objetivo.
Há aspies assim, por outro lado há aspies que só querem viver tranqüilamente sua vida e tem ambições muito menores (e a princípio, ninguém tem a obrigação de revolucionar o mundo).
- Somos pessoas como todas as outras
Nós somos pessoas diferentes das outras. Alguém pode indagar que ninguém é igual a ninguém, todas as pessoas tem alguma caracterísica ou combinação de características que o torna único, e isso é verdade. Mas é também verdade que a maioria das pessoas, mesmo diferentes entre si, possuem uma enorme quantidade de semelhanças, já nós aspies temos esta quantidade de semelhanças reduzida.
Este mito é geralmente alimentado por pessoas que são próximas de aspies, autistas, deficientes físicos ou pessoas com qualquer outra grande diferença. É uma tentativa pessoal de negar as nossas diferenças diante de sua incapacidade particular de aceitá-las.
- Somos absolutamente diferentes de todas as outras pessoas.
Mesmo alguns aspies alimentam esta idéia diante da incompreensão que sofrem do mundo, inclusive eu mesmo já fiz muito isso e me arrependi. Há uma corrente de aspies que acredita que somos uma evolução da raça humana, e dizem que as pessoas que não os compreendem não conseguem entendê-los por serem de uma espécie inferior. É muito confortável manter este pensamento, principalmente para os que já tem os egos mais machucados pela rejeição alheia. O fato de ser confortável não torna este pensamento mais ou menos verdadeiro.
Além disso, outras pessoas também alimentam este preconceito. São pessoas que convivem com os aspies e ficam tão focadas em suas características peculiares que se esquecem de considerar aquilo em que eles são iguais. São geralmente estas pessoas que alimentam o próximo mito:
- Vivemos em nosso próprio mundo
- Gostou? Não?
Se você conhece mais alguns mitos que circulam sobre nós fique a vontade para descrevê-los na área de comentários. Se você não concorda e/ou não gosta do que escrevi pode e deve ficar a vontade para questionar.
6 comentários:
Gostei demais do que escreveu sobre "MITOS", concordo com voce.
O conflito é grande para todos, o desafio maior é resignar-se e compreender que todos temos talentos e podemos fazer coisas boas para beneficiar o mundo em que vivemos.
Segundo Paulo Freire (1986) não há pessoas que sabem mais do que as outras, o que há verdadeiramente são pessoas diferentes,... todos podemos aprender juntos,... desde um simples agricultor até o mais intelectual dos homens. Socrates também afirmou: "Só sei que nada sei..." Eis aí a chave do aperfeiçoamento humano...
Anônimo 1, obrigado pela visita. Você tem razão, isso não é fácil, mas porque a vida deveria de ser fácil?
O aspie é alguém que coloca em xeque os ideias que as pessoas tem a respeito dos outros. Somos a diferença, e a diferença pode causar muito medo.
Anônimo 2, considerando o que você disse, percebe o quão importante que é na sociedade o papel daquelas pessoas diferentes que destoam dos padrões estabelecidos, como nós?
Você tem razão, vivemos em uma relação de dependência mútua, por isso que disse no texto que me arrependi de ter me considerado superior as outras pessoas. Considerar os outros inferiores parece muito confortável mas é tortuoso quando você percebe que no fundo precisa e muito daquela humanidade que renega.
Apesar dessa premissa de que nós Aspies tenhamos uma espécie de distúrbio ser fundamentada cientificamente, o mais razoável é compreender que essa distinção é tão desnecessária quanto definir subraças no tronco principal homo sapiens... Em síntese temos na nossa maioria um desejo inato de nos adaptar a sociedade e contribuir com essa com capacidades especiais que afinal temos, se alguma discrepância social nos é conferida também é verdade que dos nossos saem pessoas que modificam o mundo nos campos que exigem grande concentração e processamento de informações como áreas científicas e humanas... Penso que cabe a nós portadores dessa particularidade a responsabilidade de nos enquadrar tanto quanto possivel ao modelo social existente e a sociedade natual a percepção de que nós somos elementos diferenciados e com potencial para contribuir efetivamente em campos especificos para o bem comum. Penso que o equilíbrio está no exercício da empatia mútua e na capacidade de Aspies e naturais se verem sempre sob as perspectivas de ser humano e de humanidade, simultâneamente.
Gostei muito desse blog, apesar de já ter 25 anos e a pouco tempo ter descoberto o nome do meu distúrbio, posso por experiência própria assegurar que existe lugar para nós na sociedade e que temos uma capacidade diferencialmente positiva no que tange atividade cerebral, para que possamos usar essa capacidade em nosso favor e ao mesmo tempo coexistir bem socialmente e contribuir com o coletivo é imprescindível quebrarmos diariamente os paradigmas, somente assim os dias tornam-se menos tensos e podemos coexistir positivamente sem sermos vistos como anormais...
Saudações.
Muito bom! Gostei muito de ler e sobre as opiniões...ainda ando a encontrar o meu eu que tb é torturoso.
Escrevo aqui:
cantinhodosaspies.blogspot.com
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